Cortiço em SP tem aluguel de classe média

BARRACÃO DE ZINCO    Sem emprego formal, famílias não conseguem alugar casas ou optam pelo centro para ficar próximas do trabalho.                      

 

Folha de São Paulo 16/10/2005

 

“Quando chove é o caos.O quintal alaga. Aí, só de canoa. A água bate no joelho”, diz dona Nenê, ou Cícera Maria da Silva, 49, que paga R$ 320 para morar, incluindo água e luz.

 É quase o valor do aluguel de um apartamento de um dormitório em edifícios de classe média de bairros paulistanos como o Jardim São Paulo, na zona norte, ou na Saúde, na zona sul, uma área bem arbonizada próxima ao parque do Estado.

 Mas a realidade de dona Nenê é outra: há três anos vive em um quarto de 20 metros quadrados de um cortiço com o marido, o filho, a nora e dois netos, além da irmã da nora, que a visita.

 É que morar em cortiços pode custar de R$ 170 a R$ 340 por mês, dependendo do tamanho do cômodo, na capital paulista.

O sacrifício de morar na desvalorizada região da Luz, no centro de São Paulo, afirma ela, e não em uma casa mais em conta, na periferia, se justifica, diz ela. “ A gente fica longe de tudo.”

Esse descompasso se deve á presença do intermediário, que loca o imóvel por um determinado valor e depois divide esse imóvel, que em geral é uma casa, em vários cômodos e os subloca a famílias diferentes, Ele se aproveita de pessoas que, geralmente por não ter emprego formal, não conseguem pagar aluguel.

No fim do mês, o lucro do intermediário pode superar em até três vezes o valor do aluguel.

“Muitas vezes, a pessoa não consegue comprovar renda, que é uma das exigências do mercado formal de locação de imóveis, e acaba alugando o quarto de um cortiço, só que pagando o mesmo valor”, explica o pesquisador Luiz Kohara, que estudou o assunto para a sua dissertação de mestrado pela USP. “A carência habitacional favorece a exploração em cima da miséria”, afirma Kohara.

  Outro aspecto que inviabiliza o aluguel no mercado formal por parte dos encortiçados é o condomínio, que acaba elevando o custo da moradia, segundo Celso de Sampaio Amaral Neto, 45, da empresa de consultoria do mercado imobiliário Amaral D´ Ávila.

  A razão que leva essas pessoas a se sujeitar a viver em ambientes insalubres e superlotados está, principalmente, na localização do imóvel, por causa do fácil acesso ao trabalho, á rede de transporte público e á infra-estrutura urbana, como escolas e hospitais.

 

 

Banheiro coletivo

 

  Todo os dias dona Nenê atravessa os cerca de dez metros que separam o seu quarto do quintal e torce para que um dos dois banheiros não tenha sido ocupado por nenhum dos outros 27 moradores do cortiço em que mora.

  Vizinha de quarto de dona Nenê no cortiço- que fica na rua Guilherme Maw, uma travessa da rua São Caetano, famosa por concentrar lojas de vestidos de noiva -, Isabel Cristina Santos Camilo, 39, sofre com a água das chuvas que, insiste em gotejar do forro e escorrer pelas paredes, deixando um leve cheiro de mofo no quarto de 22 m2 que divide com o marido e três filhos adolescentes.

   Há um ano e meio nesse endereço, Isabel conta que está melhor do que no antigo cortiço onde vivia. “Lá também molhava, mas aqui molha um pouco menos”, diz, com um sorriso resignado.

   Sergipiana de Estância, a 68 km de Aracaju, Isabel complementa com R$ 100 a renda de R$ 600 do marido fazendo flores de tecido para arranjos e buquês de noiva, vendidos por ali mesmo, na rua São Caetano.

  Morar perto do trabalho também é o que motiva Genésio de Castro Luciano, 46, a ficar na Luz.

  “Minha esposa trabalha em uma fábrica costurando sapatos aqui ao lado”,diz, apontando para a construção vizinha ao terreno onde fica sua casa. É a de número 11, no fim do quintal da rua Djalma Dutra, 240. “ Pago R$ 250 de aluguel. Eu encontraria uma casa na periferia por R$ 120 ou R$ 150, mas, quando morava em Perus, na periferia da zona norte, ela tinha que levantar ás 4h para vir trabalhar aqui”.

  Integrante da Comissão dos Representantes de Cortiços e Pensões do Perímetro Luz, a luta de Luciano, em suas palavras, é por moradia própria e decente. “Não peço nada de graça.Só defendo que todos tenham casa”.

 

 

Rotina

 

  Natural de Jataúba, cidade do agreste pernambucano a 228 km de Recife, dona Nenê tem de dividir com as outras famílias duas pias e dois tanques, cobertos por um parco conjunto de telhas transparentes, ao lado dos escassos varais, sempre cheios.

  Sem revestimento de azulejo ou janelas, os dois banheiros, que ficam no quintal da casa, abrigam ainda os chuveiros elétricos, fragilmente instalados acima do vaso sanitário. “ Não há briga para usar o banheiro. Todo mundo é compreensivo”, diz dona Nenê, que precisou colocar um bloqueador de chamadas a cobrar em seu telefone, que, assim como a sua intimidade, também é compartilhado com os outros moradores.

  “Ás vezes a música alta rola solta”, reclama a vizinha Isabel. Ela conta ainda que acumula a roupa para ser lavada por duas semanas.

 “Se for lavar todo dia não tem varal suficiente”, pondera.

  Os Incômodos que a afetam parecem não abalar seu filho. “Aqui é bom porque tem colega para brincar”, diz Bruno, 10, que cursa a 4a série, mas não sabe ler. “Só conheço as letras”.